O “Novo Normal”
Ou reflexões e previsões sobre a arquitetura de nossas casas pós-pandemia
Joyce Diehl
Esse tempo de isolamento social trouxe grandes reflexões para todos. Ou pelo menos para quem foi além de testar novas receitas de bolos. Muitos de nós, sortudos, tivemos que nos reinventar, fazendo de nossa casa local de trabalho, aprendizado (dos filhos, nosso, para quem foi atrás). Descoberta de novas aptidões, ou pelo menos aperfeiçoar – uma língua, o melhor uso das horas e dos conteúdos, um prato novo, uma nova forma de viver e de conviver. E tudo através da Internet.
Filósofos e estudiosos, em maior ou menor grau de positividade, falam em mudanças – no jeito de pensar, de ver a vida, de ver o outro. Outros, no jeito de viver, trabalhar, estudar, morar. Procurando sobre o tema – as implicações a curto, médio e longo prazo de uma pandemia como jamais vivida pela grande maioria de nós, achei respostas – do que já veio e nem nos demos conta, e do que vem por ai.
As reflexões são muitas no vasto campo da filosofia. “Teremos a sensação de que havia um mundo antes e outro que veio depois (tipo AP e DP?, pensei com meus botões…). Já podemos nos perguntar como idealmente queremos que o mundo seja depois”, disse Alain de Botton, autor de “A Arquitetura da Felicidade”. Bill Gates, fundador da Microsoft é mais profundo: sem vacina, o receio de interagir externamente estará presente até que se descubra o antidoto – para a epidemia e para o medo de se expor. E vai além:
“Muitos esperam que a vida retorne ao normal em poucas semanas. Infelizmente, isso não vai acontecer. Eu acredito que a humanidade vencerá essa pandemia. Mas somente se a maioria da população estiver vacinada. Até lá, a vida não será a mesma. Mesmo que os governos permitam que os negócios sejam reabertos, os seres humanos têm uma aversão natural à ideia de se colocarem em risco. Aeroportos não terão grandes filas, arenas esportivas ficarão vazias e a economia mundial ficará abatida, porque a demanda seguirá baixa e as pessoas consumirão de forma mais conservadora.”
Li Edelkoort, sempre além de seu tempo como toda trend Hunter, fala em modificações ainda mais profundas:
“Há uma curva de aprendizado com essa pandemia. O vírus vem mostrar que já sabíamos o que tínhamos de fazer: desacelerar, ter menos estresse, uma vida melhor, não viajar tanto, não consumir tanto (…) que temos de ser muito mais cuidadosos com o planeta, mas também com nós mesmos…”.
Michel Houellebecq, escritor francês, é otimista ao extremo: espera que o aprendizado se perpetue – e não evapore como o evento da queda das Torres Gemêas, onde nossa memória durou pouco ( a meu ver, porque não estávamos tão envolvidos, uma dor distante, diferente de agora). Concordamos, eu e ele, que, de repente, esse é um momento de pausar, repensar. “Acho que o mundo será completamente modificado pelas pessoas que pensam em melhorar seu futuro (…) acho que esse momento vai realmente ajudar as pessoas a refletir sobre sua rotina.”
Leandro Karnal, filosofa à sua moda: “Na tradição histórica, depois de um período de recolhimento e morte, há uma grande explosão de vida”. Relembra o surgimento do Renascimento após a Peste Negra, da glamourização da moda depois da Revolução. Que haverá uma explosão de sociabilidade em um primeiro momento. Para ele, uma epidemia aceleram a história, assim como uma guerra, uma revolução. “O primeiro fator de uma epidemia, guerra ou revolução é acelerar processos que já estavam em curso. Essa é uma mudança irreversível”, complementa. Karnal diz que as famílias encaram de maneira diferente a pandemia, de acordo com o poder aquisitivo: uns com tédio, outros com fome num país imerso na informalidade e invisibilidade. E faz um aleta que serve a todos, na medida do possível: “Não espere o futuro para ser feliz, não dá para acreditar que a felicidade será sempre adiada para um próximo momento”. O que aumenta ainda mais nossa legião de ansiosos.
Luiz Felipe Pondé, filósofo e escritor, vai além do aumento de ansiedade, e é mais amargo: ” As pessoas vão descobrindo que os relacionamentos são mantidos pelas horas que a gente não está junto. O relacionamento saudável é mantido inclusive pelas ausências.” O que pede espaços para manter-se isolado, mesmo junto. Cota que a procura pela fé também deve subir, como em todos os momentos de perdas. O que deve ativar todo tipo de espiritualidade, em grupo ou sozinhos, como a meditação. Ou o mero silêncio.
Mário Cortella, sempre otimista, tem a esperança que nossos valores, mudem. “A convivência desejada, a expressão da solidariedade, a capacidade da compaixão, o revigoramento de uma ciência que se coloca a serviço da humanidade e não exclusivamente da atividade mercantil”. Já a expectativa não é necessariamente de grandes mudanças, “ uma humanidade nova, mas uma humanidade ainda assustada, ainda em estado de perplexidade, tentando entender coisas que só ficarão claras, talvez, em muitos anos”. Mais reflexivos, talvez?
Até de onde menos se espera- o glamouroso mundo fashion – Giorgio Armani, estilista italiano, publicou uma carta aberta ao mundo da moda: “Sempre acreditei na elegância atemporal, na criação de roupas que permanecerão ao longo do tempo”. Que “o momento é turbulento, mas também nos oferece a oportunidade única de corrigir o que está errado, de recuperar uma dimensão mais humana.”
Depois de tantos dias de isolamento, convivendo 24 horas por dia dividindo os mesmos espaços, talvez as mesmas atividades, que lições tirar para nossa casa, nosso local de trabalho? Como pós a Queda das Torres gêmeas, paralelo que fiz em texto anterior (*) a cozinha ganha novas atividades, entre necessidade e prazer. Enclausurados (hoje, por decreto; Nova Iorque, em 2001, por incertezas, ambas por medo), muitos descobriram – ou redescobriram – a cozinha. De novo local de convivência com familiares e amigos – como já foi nos tempos de nossas mães, avós – , com essa atração que todo ser humano tem por comida, bebida, boa conversa e até discussões. “Com a pandemia, cozinhar em casa virou necessidade e tem muita gente transformando esse possível desafio em prazer”, disse Antônio Ferreira Junior, arquiteto, que diz não fritar nem um ovo antes disso tudo. Com a diferença que agora quem nos ensina são as redes sociais. Alguns foram além e resgataram receitas de família escritas em amarelados cadernos de receitas. Tota Penteado, arquiteta, vai além:
“ Estamos resgatando uma série de valores perdidos, e cozinhar tem sido um deles. Na correria do dia a dia não sobrava mais tempo. Acho que a quarentena traz isso de bom, além de deixar todos no mesmo nível, com atribuições que não mais imaginávamos ter(…) Gastronomia, para mim, é isso, você recuperar memórias, cheiros e sabores”.
Resgatar talvez seja o verbo da vez. Tirar um pouco do glamour e ganhar maior significado. Gosto dos conceitos trabalhados pelo arquiteto Guto Requena, que ampliam o olhar sobre os espaços, perdem seus conceitos iniciais ( cozinha, sala de estar/living, sala de jantar, quartos) para atividades – ou seja, tudo que se pode fazer dentro deles: trabalhar, descansar, cozinhar, comer, relaxar, meditar…).
Home office, traduzido em trabalhar, por exemplo, resgatou sua real importância. Passou de modismo para espaço de trabalho e/ou estudo com eficiência – seja pelos pais, seja pelos filhos – um lugar a ser planejado com atenção, repensado. O tal home theater – espaço misto de relaxar, conviver – sempre teve sua maestria, deve ganhar ainda mais elementos indispensáveis e componíveis conforme a plateia. E no sentido de manter a individualidade
necessária, talvez os quartos se ponham em situação mais autossuficiente, unindo muitas tarefas – inclusive dormir.
Ganham valor também as sacadas, varandas, as aberturas maiores, as vistas. Tudo que amplie o olhar para nos salvar do vagaroso passar das horas. O arquiteto Daniel Bolson dá um depoimento em sua coluna na Casa e Jardim muito próxima do que imagino: o tédio – já levantado por Karnal – que a tecnologia, a conexão 24hs por dia, nos tirou e, conforme Bolson, “se acentuou em tempos de quarentena – parece ter nos anestesiado” . E quem não têm?
“O tédio, o nada a fazer para passar o tempinho chato de esperas. Tédio que nos faz observar o movimento, as pessoas, suas reações, o contexto, analisar como estamos nos sentindo, nossa respiração, sem fugas. E que , infelizmente, o mundo tende a voltar à vida como era antes e de forma ainda mais voraz, como que querendo recompensar o tempo visto como perdido”.
Mas traz uma esperança: “Nunca estivemos em uma relação tão próxima com nossa casa quanto agora. Parece que ela foi colocada à prova em suas mais variadas características”. E desta “prova”, a procura por melhorias – seja por reformas necessárias, novos equipamentos, quem sabe um novo lar quando possível, um novo bairro, uma nova cidade – a casa “ de dormir” vira “ casa de viver” para muitos que pensam que novas epidemias virão ( será que não?). Ou outras formas de violência. E concordo plenamente – ensinamentos que vem de família – com Bolson quando diz que “a casa reflete muito o estado de espírito de quem lá habita (…). Arrumar os espaços parece por vezes trazer uma sensação de calma, como que se as ideias fossem se clareando, indo para o lugar certo junto da organização”.
Isso traz interesse por armários, organizadores, espaços planejados, projetos bem pensados. E, claro, mudanças mais profundas em nosso jeito brasileiro de ser. É preciso reinventar-se. “ Reinventar-se não é algo que acontece instantaneamente; se genuíno, é resultado de um misto de sensações, também vindo da tristeza, de percepções e amadurecimento, e isso leva tempo, requerendo um profundo olhar para si”, diz Bolson. Pode demorar.
E levanta pontos que listo, concordo e completo:
– Valorização da ventilação natural e insolação das casas/ambientes, para que a casa em si seja saudável, mantendo pessoas saudáveis dentro dela. Valem pequenos terraços, sacadas ampliadas, solários, etc. Isso lembra projetos onde as varandas dos apartamentos são desencontradas, minimizando as sombras. Em um condomínio, ponto para os projetos que mantém afastamento entre as casas ou trabalha esses conceitos em cada uma delas;
“A vontade de respirar ou viver ao ar livre, com mais espaço, mas dentro dos limites de nossa casa, passa a ser sonho de consumo”.
Diego Revollo, arquiteto
– Casas/apartamentos com melhor relação com a rua, visualmente (janelas amplas, sacadas, terraços, vistas). Ganham pontos as casas com terrenos, independente do tamanho, condomínios com bom tratamento paisagístico, quem sabe um jardim central no caso de mais de uma edificação;
“Volto num ponto que insisto há horas: o da sacada, da gentileza urbana que gera um ambiente aberto em meio a torres verticais que por vezes nos oprimem”.
Daniel Bolson
– Casas/apartamentos que tragam melhor relação com a natureza, existente ou construída. Ganham espaço as plantas em geral, dentro da já existente tendência Urban Jungle(**) , através de hortas, floreiras, jardins em vasos , jardins verticais, arvoretas. O mesmo que se vê em outro conceito em alta – a chamada Biofilia (**): madeira (decks, tablados, revestimento de paredes, tampos de mesas), solário, pisos de seixos, pedras, fontes, fibras e tecidos naturais, designada como Biofilia de experiência direta. Vale também a Biofilia de experiência indireta, a conexão através de materiais atualizados (revestimentos amadeirados; peças orgânicas, tons da natureza entre verdes, terrosos e azuis, como vieram as cores do ano, papéis de parede com motivos florais, etc.).
E muito mais:
– Repensar o hall de entrada como um espaço de transição. Vamos aprender que o que vem da rua, “fica na rua”, como aprendemos no Feng Shui. Talvez a “nova” entrada seja pela área de serviço, mas será valorizada: afinal, ela que nos recebe ao entrar em casa. O Feng Shui fala em tocar os sapatos, largar as bolsas e sacolas, despojar-se das roupas: soa familiar?
– Repensar as sacadas e varandas como espaços de ligação do que há dentro para o que há fora, e não mais para secar roupas, largar objetos. Podem ser usados para ressaltar a natureza na casa, com plantas, pequenos decks (perfeito para pés descalços…), quem sabe uma mesinha para conversar ou observar a vida? Pode até virar local de trabalho, se for essa a necessidade, mesmo que “escamoteavel” ;
– Repensar os espaços de trabalhar e/ou estudar que precisam ser menos improvisados, mais bem definidos quanto ao local (vale um elemento vazado, uma prateleira, uma cortina/persiana), a privacidade/silêncio necessários ( o que mais vimos foram lives em locais pouco apropriados), equipamentos ( cadeiras, computadores/outros, Internet) que tragam conforto e eficiência, uma boa iluminação, lugar para água, café (previne as escapadas). Se possível, com vista para fora. Ou usar da cromoterapia para melhorar o desempenho e atenção (amarelo?), a paciência ( verde?), imagens que tragam boas energias, uma planta para humanizar;
– Ressignificado e maior importância da cozinha como espaço de estar, conviver ter novas experiências, trazer memórias afetivas através de aromas e sabores, do bom convívio com os outros da casa e conosco mesmo. Valorização do papel do protagonista – ou protagonistas ( agora se cozinha em família), com bancadas bem pensadas, divididas por áreas de trabalho, fogão em ilha se for do interesse. Valorizar ainda mais os eletrodomésticos, os utensílios, a cozinha planejada, o local das refeições, as mesas arrumadas. Nada mais será guardado para visitas. Deve crescer, ainda mais, o interesse pelo tal espaço gourmet, que vem mais simples em termos de identidade, mas mais eficientes em termos de equipamentos e acabamentos, mas também com ares mais rústicos, com fogões a lenha, sejam eles tradicionais ou revisitados;
– Os chamados home theaters vão ganhar novos tratamentos, inclusive acústicos, e as tecnologias que se pode alcançar. Um estofado que receba mais gente e possa se reinventar (módulos componíveis). Mesas de apoio para as comidinhas, pufes de apoio para os pés, aberturas com blackout;
– Os quartos como espaços individualizados, o mais autossustentáveis possível, verdadeiros oásis humanos e voltados ainda mais para seu usuário, com ainda mais multiuso: comer, estudar, receber, trabalhar, se comunicar, ver telas (nessa cada vez maior explosão de formas de ver conteúdos) , relaxar – e até dormir;
– Surgimento de novas necessidades, como espaço que eu chamaria de lugar de cuidados – do corpo e da alma: exercitar-se, nem que seja um alongamento, ou meditar, escutar sua música, ler seu livro em paz, em lugar específico ou não;
– Nos espaços em geral, reavaliação e valorização das memórias afetivas, das experiências bem vividas, da personalização dos espaços através de coleções diversas, peças trazidas de viagens, peças de família (móveis, louças de família, livros, o velho livro de receitas);
Sobre acabamentos/materiais escolhidos, além de conexão com o mais natural possível, como já vimos, foco total na fácil manutenção ( do produto, da limpeza) e na durabilidade – como produto e como estilo, os chamados atemporais. E pet friendly, com certeza. Afinal, nosso eterno companheiros não podem dar muito trabalho!
Deve crescer o interesse por limpeza com facilitadores (aspiração central, aspiradores robóticos, vaporizadores, eletrodomésticos de última geração) e sem produtos químicos ( lâmpadas especiais, esterilizadores). Em super alta, depois da conta do isolamento ser cobrada, as fontes limpas de energia (consumidas e produzidas), a coleta seletiva de resíduos, os produtos de baixo consumo e alta eficiência, e que não custem “ o olho da cara”.
E tudo, óbvio, pautado na real sustentabilidade que vem do consumo inteligente, necessário, bem pensado. Afinal, se a casa precisa estar em ordem, o que dizer do planeta?
“Consumir menos e melhor e evitar os exageros reflete a necessidade o nosso despertar para um mundo mais real, menos encenado e mais verdadeiro”.
Diego Revollo
Joyce Diehl, arquiteta, especilizada em Branding, interessada por comportamento humano e tendências, mestrado em educação EAD.
Na próxima edição, vamos falar em como esse momento pode interferir nas cidades e novos empreendimentos.
Fontes de estudo e imagens: Casa Vogue, Olhares News, Home Decore, Estadão O Globo, ArqSC, Pinterest, lives diversas no Instagram.
“Novo normal” é uma expressão cunhada por Mohamed El-Erian para caracterizar o fato de que esta crise não é como as que vivemos nas últimas décadas, com repercussões basicamente cíclicas, mas uma crise que provocará uma ruptura estrutural: quando ela passar e as coisas voltarem ao normal, esse não vai ser o mesmo normal de antes. Não reconhecer isso é arriscar a surpresa de se planejar para a volta do normal anterior e se descobrir numa realidade bem diferente.(Via Instituto Millenium)
(*) O que a queda das Torres Gêmeas e o Covid19 têm em comum e como vão modificar nosso jeito de viver em https://revestir.com.br/quarentena-e-nossa-casa-o-que-vem-por-ai/
(**) Urban Jungle – basicamente trazer a floresta para a cidade – ou melhor, para dentro de casa;
(***) O termo Biofilia significa, literalmente, “amor à vida”. Foi um termo cunhado por Erich Fromm, psicólogo e filósofo, em 1964. E difundido pelo biólogo Edward O. Wilson em 1984, quando lançou o livro com o nome Biofilia para explicar a afinidade inata dos seres humanos pelo mundo natural e a grandiosidade desta conexão.