Todas as sensações nas coleções de 2023

Neuroarquitetura, biofilia e sustentabilidade: o que vi nas coleções de 2023

Por Joyce Diehl

Respondendo à pergunta que fiz na edição de março – “o que quero ver na Revestir 2023” – escolhi alguns lançamentos que condizem com o que espero dessa “nova” arquitetura. Desculpem as marcas, mas vou me fixar no visto e sentido –  e não nomes, salvo aqueles que me lembrar.

E porque tão “tardio”?

Para fugir do sentido especulador do setor. Deixar passar o “tsunami” de manchetes e matérias – tantas que a gente se perde e nem digere – e me fixar, tão somente, no sentido do de vi (e gostei). E refletir no que foi visto, no que vem por aí, no que foge ao óbvio dos lançamentos – sempre muito “iguais” – e faz jus ao que penso. Em resumo: no que tem sentido, significado, emoção.

A concha do sururu sendo manufaturada. Projeto Sururu: Conchas que Transformam, de Rodrigo Ambrosio e Marcelo Rosenbaum (Archtrends Foto: Ricardo Wolf)

 

E explico. Como gosto de dizer – e não é de hoje – somos seres sensoriais. Cabe aos espaços – e o pensar sobre eles – uma abordagem multissensorial. Salientar apenas a visão, a estética, é muito aquém do que os ambientes podem nos oferecer. Como muito bem explica a arquiteta Priscilla Bencke, da Neuroarq Academy, é fundamental que arquitetos e designers não se limitem a tratar o aspecto visual em seus projetos. Isso porque, a todo momento, um sentido exerce influência sobre o outro. Conforme Priscila, citando uma pesquisa realizada pela Universidade de Mainz, na Alemanha, que demonstrou como a cor dos ambientes interfere até no paladar, precisamos pensar no ser humano como um todo – passado, presente, futuro. E individual, feito nossa digital. E, acima de tudo, nos conectarmos com nós mesmos…

 

Ateliê. Exposição “Michelangelo – O Mestre da Capela Sistina”, MIS Experience, SP.

 

Voltando à feira e nas apostas das empresas, alguns stands já anunciavam o dito: muita conexão com a natureza – do mundo e humana. De jardins verticais belíssimos a jardins de cactos por todos os lados, passando por móbiles – que vi em toda parte, até nas exposições que visitei – em corda de sisal, em peças de argila feitas à mão, muito de madeira e até papel. Nada mais sensorial, não? Fora certa conexão lúdica que carrego…

 

Detalhes do estande da Cerâmica Elizabeth, ExpoRevestir 2023

 

Vi muito de terra – nos tons, materiais, formatos, texturas. A Neurorquitetura – que, bem longe dos modismos, veio para ficar e ressignificar a arquitetura e dar maior importância na inter-relação entre cada um de nós (posto que somos únicos) com os espaços – tem nos mostrado o que já sabíamos: o natural nos melhora. Conforme Andréa de Paiva, em texto do portal Neuroau[i],  temos uma necessidade primitiva e inata de natureza que tentamos a todo momento suprir, e que foge da percepção consciente. Uma tendência humana de interagir e se conectar a outras formas de vida na natureza, a tal biofilia (mais falada que trabalhada) defendida pelo biólogo Edward Wilson, ainda em 1984.

 

Cidade Matarazzo, São Paulo. Rosewood Hotel São Paulo, Torre Mata Atlântica e Aya Hub, com projeto do arquiteto francês Jean Nouvel

 

E isso vai bem além da visão!

Segundo Andréa, “a tal necessidade inata não está apenas relacionada ao sentido da visão, como muitas vezes tendemos a acreditar. Isto é, não precisamos apenas ver natureza, e sim percebê-la através de todos os nossos sentidos. Conforme ela, estudos realizados no Japão sobre os efeitos do toque em diferentes materiais como madeira, metal e azulejos, entre outros, constataram que o simples toque na madeira tornava o sistema nervoso parassimpático mais ativo. “Isso significa que os níveis de estresse do nosso corpo tendem a diminuir, facilitando o relaxamento”, complementa, estado que pode ser  desencadeado pelo estímulo tátil de outros materiais naturais. Detalhe importante: isso foi observado mesmo quando os participantes mantinham os olhos fechados. Ou seja: dispensa o estimulo visual!

Outros fatores ditados por Andrea são ainda mais impressionantes. Conforme a arquiteta, vários estudos vêm discutindo temas como o sonic seasoning, por exemplo, que aponta que o som do ambiente pode influenciar na percepção de sabor. Outros apontam que a cor da iluminação de um espaço afeta não apenas a percepção de sabor, mas também a percepção de valor de um produto. Além das questões culturais relacionadas a pertencimento –  a um lugar , nação, grupo, tribo…Ou seja: teremos, ainda, muitas descobertas salientando, cada vez mais, a importância das boas escolhas para uma boa experiência. E do quanto ainda temos que avançar nesse tema.

 

Um simples modo diferente de usar um produto e suas reações em nosso cérebro…

 

Daí a importância do multissensorial, visto como essencial por estudiosos de todos os setores, ativando várias partes do cérebro ao mesmo tempo. E na arquitetura – mais especificamente de interiores. Por isso, estamos fugindo do brilho extremo e de sua sensação de gelado. E tomando ciência de que o toque mais quente é o que nos bem recebe, nos conectando com nossa memória ancestral. O olhar relaxa, meio que se sentindo em casa, a mão intuitivamente sente, o pisar reconforta e agradece. Nos sentimos seguros. Os espaços ficam mais quentes, aconchegantes, honestos, doces até. Muito neles de uma memória afetiva construída em nós, de sentir-se verdadeiramente em casa. De sentir os pés no chão.

Sabe aquela sensação boa que vem da terra molhada, do contato direto com a natureza? Estudos citados por Andrea de Paiva que investigam os efeitos de aspirarmos, através da respiração, substâncias voláteis emitidas pelas bactérias no solo estimulam o aumento na produção de serotonina no organismo, aquela mesma, associada à sensação de bem-estar e felicidade. Viu? Não é só uma sensação: é real. Pensando assim, de não temos a natureza por perto, melhor trazer, incluindo em nossos projetos. E isso se destacou nas apostas mostradas, nas frases bem colocadas, nos textos bem construídos. Demos tantas voltas para, enfim, chegar à conclusão que sábia é a natureza, despertando os nossos sentidos.

 

Calu Fontes para Decortile

 

Texturas e formatos orgânicos no setor de mármores das coleções 2023

 

Quanto aos formatos, vale lembrar que não temos nada muito reto na natureza. Por isso os orgânicos chamam tanto a nossa atenção nas coleções. Muitos parecem feitos a mão – ou a partir dela. É sabido que os formatos orgânicos são mais aprazíveis e mais receptivos e que podem, sim, trazer mais natureza para os espaços.  Mas não só com a inclusão de plantas, alerta Andrea. Segundo ela, o design biofílico vai bem além disso, pelo uso de formas mais orgânicas, principalmente os fractais, ou que simulem a natureza (em todos os sentidos), sua organização espacial e complexidade de estímulos multissensoriais, onde a natureza é a grande mestra.

Claro, a tecnologia pede grandes formatos nessa guerra pelo “quem dá mais”, sem se dar conta de que os valores são outros. Mas se pensarmos em amplitude, continuidade, aliadas ao toque sedoso, familiar, quem sabe? Mas teremos, um dia, que discutir esse antagonismo de espaços cada vez menores versus produtos cada vez maiores – isso, claro, se vermos o mercado como um todo.

Sim, a individualidade está “em alta”. O desejo de autoexpressão. Não nos contentamos mais em seguir um padrão, nem o que nos é imposto. E não é de hoje: vem sendo minha pauta desde muito tempo. Parabéns para as marcas que apostaram nas cores (e não foram só os revestimentos), as texturas, nos formatos diferenciados, nos acabamentos. E nas estampas, entre composições de flores e folhas (até em grandes formatos), estampas étnicas, composições arabescadas.

Painéis deslizantes em tela de papel. Japan House, São Paulo 

 

Sim, o sensorial está “em alta”, como gostam de dizer. Para mim, nunca deixou de estar. Isso ficou nítido não só nos stands e no todo mostrado, como nas exposições e outros espaços fora do contexto – São Paulo e sua vasta galeria de inspirações.  Exposições Michelângelo  e Picasso, Japan House, Casa das Rosas, Pinacoteca, Rosewood e arredores, vitrines, arquitetura do ontem e do hoje – mais ainda quando convivendo juntas.  Sim, porque mergulhar “no que vem por ai” é mergulhar no ontem, rever o hoje e sentir nesse mergulho o seu real valor. Saber de onde tudo vem e para onde vai. O que nos melhora.

E, claro, de falamos de natureza, falamos de sustentabilidade – até porque a agenda de 2030 é extensa e pede passagem. Não há mais espaço para desrespeitos, desprezos, desgastes, deslizes de toda ordem, nem apropriações indevidas, seja no que se produz, como o produz e principalmente quem produz e para quem. A tal sustentabilidade ganha braços – feito um polvo –  e avança para áreas antes desprezadas, como a humana.

Bom exemplo é a Lepri que além da reutilização de vidro de lâmpadas, acrescentou resíduos plásticos retirados do mar para criar texturas estéticas e inovadoras  – e até resíduos da produção de jeans – um dos setores fabris mais poluentes do planeta –  como matéria-prima. E o Projeto Sururu, de Marcelo Rosenbaum e Rodrigo Ambrósio,  com ampliação da gama de produtos feitos com conchas de sururus descartados.

Não fosse a profusão de visitantes e a interferência, nem sempre agradável, dos “influencers”, no uso excessivo de ambientes “instagramáveis”, poderíamos acreditar estar num mundo sensorial à parte. Penso que, para se sentir, verdadeiramente, uma conexão, faz-se necessário um certo silêncio – coisa rara hoje em dia. Para mim, observar pede foco, atenção e senso crítico, bem longe das multidões.

Joyce Diehl, arquiteta, para a Revestir.com

@joyce.diehl

[i] https://www.neuroau.com/post/neuroarquitetura-e-biofilia-a-necessidade-primitiva-de-natureza-que-o-ambiente-ajuda-a-suprir

Crédito da galeria de inspirações: Joyce Diehl


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